quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Memórias: Carta do 1.º tenente Luís António Carvalho, da BRM na corveta Calipso junto a Maldonado (2Nov1816)


No dia 13 de Outubro, demos à vella em companhia da esquadra e de algumas embarcações mercantes, que conduziam trem de guerra, e munições de boca pertencentes à DVRR: porém infelizmente o dia de saída foi de um grande temporal, de maneira que ao sol posto já os navios estavam separados: esta corveta ficou só, e assim andámos dois dias, e no terceiro pela manhã avistámos a nau Vasco, fragata Fénix, corveta Voador, e no dia seguinte os brigues Gaivota e Real Pedro: assim navegámos unidos com o destino para este porto, aonde chegámos no dia 23. A viagem foi trabalhosa pois sempre encontrámos mau tempo: no dia 24 quis o Rio da Prata saudar-nos com o seu poder, pois caiu um formidável Pampeiro, que apesar de termos 3 ferros no fundo, marchámos a vergas arriadas, andava a corveta a nadar com o mar que entrava por todos os lados, isto tem continuado por mais vezes, e estamos certos na sua continuação.
No dia da nossa chegada, os espanhois içaram na torre a bandeira revolucionária, em consequência do que, fundámos ao largo, e tratámos o porto como inimigo.
No dia 26 mandou o chefe a terra o capitão de fragata Luis da Cunha Moreira, acompanhado do 2.º tenente Jacinto e de 4 sargentos talaveras, os quais foram recbidos por uma patrulha de espanhois a cavalo: ignoro quais foram as propostas que o chefe mandou fazer, porém sabe-se que a resposta foi bastante atrevida: do nosso exército não há notícia. O general Lecor escreveu ao conde dizendo-lhe que até 15 de outubro pretendia estar em Maldonado; porém até hoje ainda não há notícias dele. O chefe nada tem resolvido, e por consequencia  estamos incomunicáveis com a terra, sofrendo falta de tudo, os navios estão na última miséria, em S. Catarina não havia nada, vieram principar uma campanha falhos de tudo. A bordo na nau a guarnição não quis tomar o jantar porque o feijão estava podre, não há uma galinha para um doente, sobrecelentes dos navios nisso nem falemos, a corveta Voador desarvorou do mastareú da gata, foi preciso andar mendingando pelos navios cabo para deitar outro à cunha; o brigue Lebre, lugre D. Maria Teresa, e escuna Tártara ainda não apareceram, e queira Deus não lhe tenha acontecido alguma desgraça, porque o tempo foi violento.
Os pampeiros continuam, o passado foi tão forte, que à fragata Fénix arrebentaram 4 ovens (?) de enxárcia real com os grandes balanços que deu, tem havido noites  em que não há licença de dormir, poré, o pior mal é que nos veremos reduzidos a passar muita fome se o exército se demorar; de certos géneros já há grande falta, e para o futuro será de tudo. Estas são as grandes vantagens que vim buscar à corveta Calipso: eu desejava apanhar esses senhores que blasonam fundeados no Rio de Janeiro, para lhes mostrar a diferença que há do vivo ao pintado, porém vamos sofrendo enquanto eles arrotam. A nau Vasco e a fragata Fénix derão á vela ontem, por não poderem aguentar o pampeiro que veio sobre as amarras.

Maldonado, 2 de novembro de 1816
Luís António de Carvalho

* * *
Nota
O general Paulo de Queiroz Duarte (Lecor e a Cisplatina, 1984) utiliza uma versão quase idêntica, no volume I - pp. 203-204, mas esta que está no Arquivo Histórico do Itamarati, parece ser ter algumas diferenças relevantes.


Luís António de Carvalho era 1.º tenente na 8.ª companhia do 2.º batalhão da Brigada Real de Marinha, e, de acordo com Duarte, estaria embarcado na fragata Tétis. Parece estar de facto na corveta Calipso, por própria admissão: “Estas são as grandes vantagens que vim buscar à corveta Calipso” (2.11.1816).

Leia a Tomada de Maldonado, 3 semanas depois: AQUI

Fonte
Arquivo Histórico do Itamarati (Ministério das Relações Exteriores), cota AHI-REE-00905, “Documento sobre a situação angustiosa do porto de Maldonado (cóp)”, 1 fl, 1816.

Imagem
Isla de Lobos (Wikicommons)

Sem comentários:

Enviar um comentário